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BULE BULE - Vida de rima.

Bule-Bule irá comemorar os 70 anos com um DVD ao VIVO

Publicada em 03/05/17 as 08:03h por A TARDE - 413 visualizações

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 (Foto: Reprodução )

Quem é ele? O próprio responde. "Antônio Ribeiro da Conceição, flor do norte baiano, companheiro da República Federal, moço do código da lei, caixola que Deus me deu, inspetor juramentado; se perguntar cadê ele, ele está aqui: seu criado! Filho de Manoel Jararaca, que mora na Loca da Pedra; se meter o pé com ele, vai ver o rolo da queda. Sou este moço que está na sua beira, cravo das moças e alecrim que cheira. Filho de Isabel Ribeiro da Conceição, doceira, louceira, benzedeira, parteira e outras eiras".

Bule Bule, a alcunha que Antônio carrega desde moço, sobe as escadas de sua casa, em Camaçari -  a cerca de 50 quilômetros de Salvador -, cantando o epílogo da conversa. Violão em mãos, chapéu também. Alcança o seu salão-relicário. Ali estão as peças de meio século de carreira. Cordéis, discos, quadros em que foi retratado, anotações para futuros livretos e canções. A sua "biboca cultural", como ele diz, aos poucos vai ganhando as feições de um pequeno museu. A intenção, ainda sem data cravada, é abrir o espaço à comunidade. "Para que a cultura popular não seja esquecida".

Repentista, sambador e cordelista, Bule Bule completará, em outubro próximo, 70 anos. A data já mexe com sua agenda. No dia 18 de abril, ele foi homenageado durante a Bienal  Internacional do Livro do Ceará, que teve  a curadoria do escritor Lira Neto, ao lado de outros dois poetas populares - Geraldo Amâncio e o pioneiro Leandro Gomes de Barros (1865-1918). No dia 20 deste mês, dividiu o palco com o grupo BaianaSystem. E, com um CD em fase de pós-produção, já planeja um show solo e comemorativo para o final do ano, que resultará em um DVD e um novo álbum. "Só paro se for doença. De resto, a vida é coisa demais para ficar quieto".

Pra vida ficar maravilhosa

No último ano, no entanto, Bule Bule precisou realmente desacelerar. Com a insuficiência renal agravada, o artista passou a fazer sessões de hemodiálise três vezes por semana. O transplante de rim, há seis meses, pôs fim a uma dura rotina e o jogou em outra. Os horários de seus remédios, quase sempre, são controlados por sua esposa, Gina, com quem vive há pelo menos 30 anos. 

De postura babélica, como um menino que enxerga as coisas pela primeira vez na vida, Bule Bule bem que tenta se adaptar às novas regras da saúde. Mas não sem algum protesto. Às vezes, simplesmente,  tranca-se no andar de cima da casa onde mora com a família, com os pertences de uma vida de trabalho. E, se batem à sua porta, responde, rimado: "Troque a sua espoleta numa rosa, jogue fora suas balas, dum-dum; troque o seu três-oitão num jerimum, para a vida ficar maravilhosa".

Com uma centena de títulos de cordéis publicados e oito discos lançados, Bule Bule é um dos poucos representantes da cultura popular de raiz com presença forte na internet. Suas músicas estão disponíveis no YouTube e em serviços de streaming e seu site é atualizado de forma constante. Fruto do trabalho do filho e produtor, Paulo, mas também de uma visão do próprio artista. "Sou muito analfabeto para essa linguagem, mas não sou cego. Sei o que é uma imagem bem construída", diz.

De chapéu e casaco de couro, Bule Bule  construiu a sua figura como um defensor de gêneros musicais autenticamente  nordestinos, a exemplo do samba de viola e do repente. Bule Bule hoje é sinônimo de celebração nordestina em alta voltagem, uma estampa asseverada em 2008, quando  foi condecorado com a Medalha da Ordem do Mérito Cultural, concedida pelo governo brasileiro a personalidades que contribuem para a cultura nacional. 

Durante a premiação, o maestro Roberto Tibiriçá, que conduzia a Orquestra Sinfônica Heliópolis, usou o microfone para dizer que um preconceito com a música popular brasileira tinha sido quebrado naquela noite. Um pagamento que, diz Bule Bule, não vem no contracheque. "Preconceito todo mundo tem, meu poeta. O problema é assumir que tem. No mais, é uma coisa muito gostosa você tocar alguém que está em outro universo. E, venha o outro - com preconceito ou não -, eu sou muito prático e adaptável. Minha rédea é móvel", confessa.

Repente e beatbox

No show que fez com a banda  BaianaSystem - no palco armado na Praça Tereza Baptista, no Pelourinho -, Bule Bule exibiu toda a  sua maleabilidade: as bases eletrônicas serviram ao seu samba de improviso, feito em pique juvenil. E Bule Bule arriscou  até um compasso que lembrava o beatbox, a percussão feita com a boca no hip-hop. Ao lado de Russo Passapusso, vocalista e compositor da BaianaSystem, ele trouxe o sertão para o centro.

Russo Passapusso e Bule Bule no show do Baiana System no Pelourinho. Foto: Adilton Venegeroles / Ag. A TARDE

"É vital que as bandas sejam carregadas de informações tradicionais antes de fazerem uma tradução", diz Passapusso. "Bule Bule representa o processo de incorporação da música na própria pessoa. Ele é a própria arte. Quando você o vê, enxerga regiões e épocas. Está tudo dentro de sua fala. E quando você tem uma participação como essa no palco, é esse o legado: um entendimento de raiz".

A história de Antônio da Conceição começa na cidade de Antônio Cardoso, localizada a 145 quilômetros de Salvador, um tanto agreste e um tanto sertão. Município com maior número de pessoas que se dizem negras no Brasil, segundo o último Censo do IBGE, esta é uma cidade de tradição de violeiros e de rezadeiros. O pai, agricultor, mesclava a lida diária com a de artista e foi em sua companhia que o filho aprendeu a versar.

"Sambador tem que saber fazer segunda ao parceiro; a cuia, a palma, o pandeiro, tem que aprender a bater, cantar leve para o velho, tratar o moço com amor; tendo essas qualidades, é sambador", escreveu Bule Bule na letra de Samba que não tem viola. 

Com o pai e outros artistas da região, Bule Bule  pegou as manhas das rezas em festas dedicadas aos santos (onde o pagamento aos rezadores, por parte das famílias abastadas, era feito com o direito de fazer a primeira refeição e de ter a melhor fronha para se ajoelhar em frente à imagem do santo). 

Aprendeu, igualmente, os truques da parte profana. Nas rodas de samba há o licutixo, feito para atrapalhar a vida de outro sambador. Bule Bule explica: "O sujeito que está cantando coloca o pandeiro em cima da voz, para o outro não entender. Mas se o outro for esperto, fica abaixo do pandeiro, pega o som canalizado e entra no assunto do samba".

Foi em Antônio Cardoso, também, que recebeu o título que o acompanha desde então. Aos 10 anos, na padaria em que trabalhava, foi desafiado a carregar um monte de massa de pão que nem adulto dava jeito de tirar da masseira. Tarefa cumprida, algum rapaz desdenhoso soltou que aquele moleque até podia conseguir, mas não ia crescer. Miúdo daquele jeito, seria um eterno bule-bule. A referência ao casulo, a borboleta em fase de metamorfose, ficou.

"Tive um passado de menino pobre. Mas como eu não tinha vida melhor que aquela,  estava muito boa. Hoje é que sei o que faltou", diz. "Outro dia pediram fotos da minha infância. Mas só filho de rico possuía retrato. Eu não tinha nem quem fizesse, nem tinha possibilidade de ir até a cidade fazer. Quando tirei a primeira foto foi para fazer o documento de votar".

Alarde

Cantadores da terra do sol (1980) foi o primeiro álbum de Bule Bule, gravado em parceria com o cantador Zé Pedreira. Embora já fosse bastante conhecido em praças e clubes do interior da Bahia, o disco o levou a mais cidades do Nordeste. Pouco mais de uma década depois, o CD A fome e a vontade de comer (1994), concebido com o sambador Antônio Queiroz, o levou a diversas capitais do país  e a uma popularidade até então inédita.

Queiroz, hoje vivendo na cidade de  Serrinha, recorda que, naquela época, eles chegavam a fazer quatro shows numa única  semana. Geralmente, em  cidades pequenas, onde a política tinha um único sobrenome, o assédio vinha de colarinho-branco. 

"Numa daquelas viagens, após ser convidado a se lançar como político, Bule Bule  entrou  em silêncio e, num guardanapo mesmo, começou a escrever um poema",  lembra Queiroz. "O poema dizia bem  assim: 'Eu quero nada, doutor! Ser igual a muita gente, que passa a ser presidente de uma empresa estatal, tira o couro da pobreza, castra os lucros da empresa, só em seu bem pessoal'".

Os ditames da política nacional estão presentes, porém, em muitos dos cordéis que Bule Bule assina. Ao acompanhar as notícias atuais vindas de Brasília, ele diz penar. "Sofro de sede justiça. E, como todo mundo que sofre disso, gostaria que as coisas acontecessem para o bem. A gente coloca os políticos num lugar e eles viram bichos. Tiram o próprio coração e ficam vagando sem sentimento. Eles sabem o que nós precisamos, mas estão preocupados com eles e com os seus".

Durante o impeachment da presidente Dilma Rousseff, ele achou por bem não ficar calado. Concebeu um cordel batizado de Golpe 2016 e enviou a todos os deputados e senadores que se mostravam favoráveis à permanência de Rousseff no cargo. Num trecho dele, escreveu: "Dilma bebeu o veneno que Temer lhe deu na taça. Por isso Cunha ameaça e vai minando terreno. Não tiveram nem aceno dos milhões de eleitores. Ficam esses dois impostores, com manobra e mais manobra. Um dia o destino cobra, a dívida dos traidores". 

Entre os parlamentares para os quais diz ter enviado o cordel, em Brasília,  apenas a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) acusou o recebimento. "Quando eu vi que ninguém ali comprou a minha briga, senti que caí num falso conto", diz Bule Bule. "A defesa de Dilma Rousseff foi um jogo de  cena. Não era algo que eles estavam defendendo com alma e nem mesmo comprando a ideia, estavam falando por falar. Hoje, eu podia até calar a minha boca e esperar o bonde passar. Mas prefiro continuar a fazer alarde".

Num dos lotes de cordéis que enviou à Alemanha, no final do ano passado, Golpe 2016 estava presente. A remessa tinha como destino certo o artista e editor germânico Stefan Bartkowiak, um entusiasta da literatura brasileira, que pretende fundar um museu itinerante totalmente dedicado à literatura de cordel e ao samba de roda.

A ideia, levantada quando Bule Bule e o músico Mateus Aleluia se apresentavam naquele  país, segue agora  na fase de reunião de acervo. Na encomenda, postada para a Alemanha, ainda estava o cordel A tragédia entre dois amantes, o primeiro de autoria de Bule Bule, sobre um triângulo amoroso passado em Feira de Santana.

"Já deveríamos ter um museu desses no Brasil", diz Mateus  Aleluia. "Mas, aqui, a cisma com a cultura popular não é contra a expressão, mas contra quem a pratica. Quando é feita por alguém que pertence a uma classe dominante, dá-se outro nome, uma modernidade qualquer. É um preconceito de classe. Felizmente, temos a resistência de alguém como Bule Bule, um mestre do saber".

Voz de resistência

Em sua casa, Bule Bule vem catalogando os cordéis que já assinou. A bagunça feita pelos cinco gatos de rua que ele abriga torna a tarefa um pouco mais lenta. Mas a memória quase nunca falha: sabe a data de cada um e o contexto em que foi escrito. Nesse aspecto, os cordéis de tom político lhe dão a impressão de viver num eterno looping. 

Em 1985, por exemplo, indignado com desvios de verbas no Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), versou: "Brasil fantástico falado no jornal e na revista, onde atleta e estadista vê o erro e cala a boca. Só o cordelista pobre, o cantador de repente, canta em prol de sua gente até ficar com a voz rouca". 

Em Camaçari, a cidade que adotou após trabalhar no Polo Petroquímico, no final dos anos 1970, ele costuma visitar escolas, a pedido de autoridades e educadores. Dos estudantes, recebe risos, aplausos e perguntas. Outro dia, lançaram essa: pensa na morte? Ao que ele respondeu com um "vixe, tô me sentindo na metade da minha vida".

Mas Bule Bule diz que, sim, pensa. E de que forma encara a finitude? O próprio responde, recorrendo a uma rima feita em homenagem ao pai: "Morro, mas não me entrego. Passo da vida para a história. Tive existência de glória, mas chegou ao fim. Vou feliz porque, enquanto houver novena e pandeiro, repentista e tiraneiro, alguém lembrará de mim".






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