"Gosto dos garotos, diz Deus. Quero ver toda a gente
parecer-se com eles.
Não gosto dos velhos, diz Deus, a não ser que ainda sejam garotos.
Por isso no meu Reino Eu só quero garotos, desde sempre está decretado.
Garotos curvados, garotos corcundas, garotos com rugas, garotos de
barbas brancas, toda a espécie de garotos que quiserem, mas garotos, só
garotos.
Não se volta atrás, está decidido: para os outros não há lugar.
Gosto dos garotinhos, diz Deus, porque neles a minha imagem ainda não se
embaciou.
Não falsearam a minha semelhança, são novos, são puros, sem rasuras, sem
marcas de uso.
Assim, quando suavemente sobre eles me debruço, neles me reencontro.
Gosto dos garotos, porque estão ainda a crescer, ainda estão a subir.
Estão a caminho, caminhando.
Mas a gente grande, diz Deus, já não tem ponta por onde se lhe pegue.
Não mais crescerá, não mais subirá.
Parou.
É um desastre, diz Deus, agente grande, sempre a julgar que já chegou ao
fim.
Gosto dos garotos grandes, porque ainda estão a lutar, porque ainda
fazem pecados.
Não é por os fazerem, diz Deus, entendamo-nos, mas porque sabem que os
fazem, e o dizem, e fazem por não fazê-los mais.
Mas a gente grande, diz Deus, não gosto dela, nunca faz mal a ninguém,
não acha nada a reprovar em si mesma.
Nada lhes posso perdoar, nada têm para ser perdoado.
É de cortar o coração, diz Deus. É doloroso, pois nada disto é verdade.
Mas sobretudo, diz Deus, ah! Sobretudo gosto dos garotos por causa do
olhar que eles têm. É no olhar que leio a idade deles.
No meu céu só haverá olhares de cinco anos, pois não conheço nada de
mais belo que um olhar puro de garoto.
Nada disto espanta, diz Deus, habito neles e sou Eu que me debruço à
janela da alma deles. Quando vós estais no caminho de um olhar puro, sou Eu,
que vos sorrio através da matéria.
Mas, ao contrário, diz Deus, não conheço nada de mais triste que dois
olhos apagados numa cara de garoto.
Abertas estão as janelas mas a casa está vazia.
Restam dois buracos negros e sombrios, mas já não há claridade, dois
olhos, mas já não há olhar.
E fico triste à porta, e sinto frio, e espero, e bato. Que vontade de
entrar…
E o outro está sozinho: o garoto.
Engorda, iça rijo e seco, envelhece. Coitado do velho! Diz Deus.
Aleluia! Aleluia! Diz Deus, abram, velhinhos!
É o vosso Deus, é o Eterno ressuscitado que vem ressuscitar o garoto que
há em vós!
Vamos, depressa, chegou a hora, estou pronto a refazer-vos um belo rosto
de garoto, um lindo olhar de garoto…
Pois gosto dos garotos, diz Deus, e quero ver toda a gente parecer-se
com eles."